quarta-feira, 9 de agosto de 2017

Veraneios de inverno

                                                               

    Na linguagem corriqueira aspirante a lírica que alguns de nós mobilizamos em nossa comunicação, há algumas saudáveis batalhas poéticas. Numa delas, o verão costumou imperar majestosamente sobre o inverno.

    Pois, o verão é o tempo onde mora o sorriso da alma, aberta, colorida, brilhante, saliente, regada pela generosidade abundante do sol, encarnação de calor e luz. O inverno, por seu turno, é o tempo em que nossa existência contrai-se, envolta em si mesma para suprir-se de energia, desencorajada pela curteza do dia que logo desemboca em noite fria, pela preguiça das carnes que aninham-se em cobertores e até da língua que acanha-se na boca fechada ao vento, ao sereno, à conversa.

    É justamente partindo dessas conotações que reúno aqui alguns esparsos sabores de verão - alegria e delícia - que vivemos nas temporadas invernais.
   
    No verão, as frutas, com suas cores e seus sumos, correm a compor as linhas de frente de nossas cozinhas e comidas. No inverno, de fato, parece que nossos preparos aproximam-se de tons mais sóbrios, de cores mais amenas e menos variadas. O leite, o café e o chá, especialmente aqueles bufando de calentura, substituem os sucos. Acompanham também aquela canjica, de vez em quando o mingau.

    No verão, mesmo a largura das luzes não parece suficiente para comportar tudo o que podemos fazer, os passeios, os exercícios, os amigos, as fotos. No inverno, o tempo - das horas - parece ser nosso bom amigo no enfrentamento do tempo - da temperatura. Ele convida-nos a mais permissões, à leitura alongada na cadeira balançante de vó sob umas cobertas, ao filme ou a coleção deles que havíamos listado como projetos futuros, àquele famoso pôr-em-dia com a família ou os amigos em torno de um aconchegante caldo.

    No verão, que abaixa a autoestima da maioria de nós, imperfeitos mortais, à medida que o sol levanta e nos despe, existe uma comparação mais evidente entre os corpos, a invasão daquele olhar que não se deseja mas não se pode vendar, nem educar. No inverno, por outro lado, sentimo-nos desobrigados da perfeição, mais despreocupados com nossos corpos, cobertos pela elegância das compostas roupas de frio, mais à vontade para adornarem a matéria que de todos modos cumpre sua função, apenas, de morada da alma.

    No verão, é verdade, nossa saúde em geral vigora e robustece, mas no inverno, gozamos da atenção especial daqueles que amamos quando estamos enfermados. E até existe certo charme em certo tipo de tosse, no pulmão ligeiramente obstruído com as impurezas da vida e carente de uma limpeza, nas bochechas arroseadas pelas queimadura de frio que envolve a nós todos numa aura pálida, apreciável à moda romântica.

    No verão, a cama desespera e sua, o sono custa, o banho apenas alivia. No inverno, a cama convida, delicia, o sono acolhe e deleita, como colo de mãe, e a sensação da água quente a massagear o corpo depois do labor e antes do descanso nos ativa uma alegria infantil qual doce roubado, no atrevido da hora errada.

    No verão, a brasa do sol nos amorena, enforna a casa, enublece o pensamento - tanto que o estudo, para muitos, é mais amigo do frio, nele floresce com mais saúde. No inverno, vemos a incomparável beleza das frestas de sol derramando-se casa adentro e nós adentro, das fatias de calor a tocarem nossos corpos quando as procuramos pelos cômodos, e ficamos a aproveitá-las quase tal cachorros felizes - com os olhos fechados, a cabeça para trás, o coração quente.

    Agora que ele já começa a ceder sua friagem para um ventinho mais morno, que já não nos chicoteia mais com sua frieza junina, saudemos o inverno com reverência e gratidão. Tentemos apreciar os veraneios de seu tempo frio, que apesar dos pesares e das dores nos ossos, tem lá sua graça, sua beleza, sua poesia.

quarta-feira, 2 de agosto de 2017

Apontamentos sobre a experiência

                                                                    
                                                     
   Há alguns dias, tive uma conversa luminosa com um desconhecido. Pareço ser dotada de uma poderosa propensão a intercâmbios inusitados com as pessoas. Depois daquela ante-sala típica da conversa, o frio do tempo e a calentura do ônibus bem abastecido, ele espontaneamente começou a contar sobre os percalços e as peripécias de sua vida amorosa. De repente, diante de mim, dialogando mais consigo mesmo que comigo, decretou com a voz e o dedo em riste o lema que regeria suas escolhas afetivas a partir de então. “Não ficarei mais com alguém que nunca ficou com outro alguém além de mim. Não quero mais ser o primeiro namorado de ninguém”.
   
    A princípio, surgiu-me o ímpeto de retrucar em contrário. “Mas, meu caro, não seja tão taxativo! Assim, além de se imunizar contra a dor, pode acabar dispensando de antemão também muito amor, e muito amor saudável. O fato de um punhado de moçoilas inexperientes terem-no machucado sobremaneira não determina necessariamente que toda aquela inexperiente venha a machucá-lo assim.” Porém, uma mão invisível de sabedoria tapou minha boca. Calei-me. Segui escutando o rapaz falador. Foi o melhor que eu poderia ter feito.
   
    Aos poucos, consegui entendê-lo e, senão concordar com ele em sua cláusula proibitiva, não discordar do receio que o movia a decretá-la. O que ele queria dizer era: pessoas inexperientes não têm parâmetros, não têm riqueza de análise. E isso move-as muitas vezes a decisões mal pesadas que prejudicam a si próprias e ferem os outros.
   
    Ele não está enganado. Uma criança tem seu coração partido e dolorosamente marcado por coisas que nos parecem escabrosamente pequenas. Isso acontece porque elas identificam sua vida com muita intensidade a aquele momento singular, já que não conhecem ainda uma existência longeva, como a sucessão, ou a conjunção, de numerosos e variados momentos, cada um dos quais, em si mesmo, não significa o todo.
   
    Uma pessoa que tem rarefeita leitura não é a mais indicada para aconselhar alguém entregue a escrita de um livro. Seus olhos leitores são virgens demais, os fundamentos nos quais ela basearia sua avaliação são ocos, carentes de substância e vigor. Ela não pode fazer coerente crítica porque não tem referências para isso. Não saberá identificar se os personagens são planos ou redondos, se o enredo é complexo ou simplório, se a narrativa é encadeada de maneira inteligente, eficaz, intrigante ou apenas inodoramente linear simplesmente porque não as viu antes. Não está munida de elementos aos quais comparar a realidade presente e melhor, com mais justeza adjetivá-los.
       
    O mesmo ocorre com tudo, todo o resto na vida, inclusive com o mais importante: os contatos humanos que travamos. De fato, uma pessoa em seu primeiro relacionamento está num laboratório amoroso e, dependendo do grau de sua vocação à persistência, tende a abandonar o experimento com o primeiro fracasso. Ela pode tomar por comum uma grande virtude, naturalizar um traço generoso e gentil do parceiro que fertiliza saudavelmente o relacionamento, porque se acostumou a ele. Em sua única experiência, ela não sabe valorar sua raridade.

    Por outro lado, quando algo vai mal, ou frente a uma imperfeição de seu par, uma ruga mais saliente e incômoda em sua personalidade, a pessoa inexperiente pode não conseguir mensurar como aquilo é comum. Inevitavelmente geral. Enquadra a coletividade do defeito, da pedra no caminho, naquela individualidade, no relacionamento específico em que está. E assim, abre mão do que tem ignorante de que o que lhe incomoda ali ou o mau momento por que passa poderá estar presente em todos os outros, talvez inclusive mais agudamente.

    Não pretendo com este comentário instigar você que me lê a vetar pessoas inexperientes da possibilidade de pleitearem seu coração. Tenciono alertar seus olhos e os meus para a importância da experiência e experimentação, do acúmulo de vivências, para nos tornarmos pessoas com mais larga visão, percepção e apurado julgamento.

    Se quer ser bom escritor, leia muitos livros. Se quer ser bom professor, participe ativamente de muitas aulas. Se quer ser bom cozinheiro, prove muitos sabores. Se quer ser bom músico, empazine seus ouvidos. Se quer ser poeta, trate de nutrir-se poeticamente, sem moderação. Se quer se tornar um bom amante, ame; e um bom vivente, viva. Relacione-se. Amar se aprende amando, já disse Drummond, e viver se aprende vivendo.

    Abasteça seu olhar, sua escuta, seu tato, sua sensibilidade de referências e jamais sedentarize-se no exercício da aquisição delas.

    Inclusive, preste atenção às figuras aparentemente excêntricas ou quase insuportavelmente comuns perto de você que porventura te abordem para colóquio inesperado no transporte público. Elas podem agregar e muito na sua governança da própria vida. Gerar um sorriso, uma reflexao, um textinho...

quarta-feira, 26 de julho de 2017

A importância de brigar

                                                                 
    
    Ouvimos falar de gentes que brigam rotineiramente com pesar. Lamentamos saber sobre ou encontrar um casal que existe em alta frequência bélica, irmãos cuja relação não economiza desentendimentos, amigos entre os quais há pulsante atrito. Todos sabemos do desgaste e do dano que advém do brigar e somos mansamente educados a evitá-lo ao máximo, não é mesmo?

    É mesmo. E, no entanto, pode ser que nesta questão como em tantas outras nossa educação esteja nos enganando. Desaconselhando-nos mais que aconselhando-nos na marcha da vida.

    Brigar dói, cansa, nos ferocita. Não raro, o poder belicoso que nos enche e incha faz com que, no momento da briga, nos desconheçamos por completo. Naquele instante, somos um outro eu. Dizemos coisas que se tornam dolorosamente inesquecíveis para aquele alguém que desesperadamente estimamos - coisas que jamais diríamos fora de tal alterado estado. Soltamos um grito que o ouvido estranha por não saber pertencer à nossa boca, à nossa voz, ao nosso peito. Revelamos uma intensidade que não nos é nativa, não nos é natural, não nos parece ter sido causada por uma circunstância mas por uma substância.

    Aquando da consciência túrbida, do inflamado da discussão, odiamos tanto o retruque quanto a mudez do outro, censuramos seus silêncios, engolimos suas sílabas antes que possam proferi-las. Antes engolíssemos as nossas antes que pudessem pró-feri-los. Depois, imersos talvez na onda da culpa, com uma maré emocional mais calma e lúcida, é tudo o que ficamos a desejar poder ter acontecido.

    Por tudo isso, pouco somos chamados a pensar na positividade inerente à briga. Ela que na verdade é um sintoma da saúde, do vigor, da vida da relação, não só, mas também um elemento altamente nutritivo a ela. Sim, exatamente. A ausência da discussão, do desacordo, do enfrentamento pode muitas vezes ser mais alarmante do que sua presença.

    Pois, ninguém que não ame o outro forte e sinceramente se colocará na situação de dispêndio de energia que pede uma briga com ele. Ninguém que não acredite no potencial daquela relação, visualize sua continuidade - e, no fundo, sem saber, a deseje - arregaçará as mangas, gastará com tanto arrojo e tanta vontade seu verbo, sua voz, sua expressão, seu gesto, sua pulsão.

    A disposição, a potência, o ânimo necessários para a briga não estão mais presentes no par cujo laço está para expirar. Nele, o entusiasmo já minguou a tal ponto de que só há resmungos murmurados e mornos, conformados. Não há palavras pugilistas, berros agressores. Não há a concentração e canalização do viço, da energia de cada um para a construção de uma cena beligerante. Onde já não raia mais fé, não se produz o calor da discórdia. Tudo acomodou-se, pusilânime, e assim só não termina porque ninguém põe nela um fim.

    Ademais de ser sinal de vigor e esperança, a briga pode ser o incômodo mas fundamental agente arejador da relação. A erupção gloriosa do subjacente, da gritante sinceridade que gera clareza, que desvela véus, que alisa ranhuras, propiciando o terreno para diálogo fecundo, uma reaproximação e sintonia antes impensáveis.

    Portanto, vale prestar uma outra atenção às brigas em nosso entorno e àquelas nas quais tomamos parte. Vale observar as pessoas com quem escolhemos nos envolver com entrega e inteireza, inclusive ao ponto da batalha, e aquelas a quem não dedicamos semelhante vivacidade, semelhante espírito.

    Abra os olhos. Perceba. Se você não briga com uma periodicidade razoável com seus mais próximos e queridos, em acordo à personalidade relacional de ambos os envolvidos, das duas, uma: ou vocês se relacionam numa harmonia que beira a unidade, e têm temperamentos iluminadamente pacíficos, ou não se importam tanto e tão profundamente com outro e com seu laço quanto imaginam, e ele pode estar tão desbotado, insípido, inerte que avizinha-se do moribundo.
                                                              

sexta-feira, 14 de julho de 2017

A vida, as cartas e o grid de largada

                                                                

    Ultimamente, tenho passado algum tempo a cartear. Sim, a jogar cartas. Além de ser um passatempo potenciador de sociabilidades, ao intermediar simpaticamente contato entre pessoas, o jogo de cartas é exigente e divertido professor de paciência e vigoroso estímulo à imaginação.

    Dia desses, me peguei pensando como o movimento e desenvolvimento existencial da gente não é muito diferente de uma partida de qualquer carteado. Pois, a menos que alguém trapaceie muito misteriosa e eficazmente no tabuleiro cósmico, ninguém tem poder de eleger as cartas que virão em sua mão. O lugar donde viverá, a situação socioeconômica, o acesso cultural, o esteio familiar - ou a falta dele. Seus atributos físicos, dotes artísticos, talentos e destalentos, tendências de temperamento, personalidade espiritual. A vida distribui as cartas de partida de modo alheio a nós, nossa vontade, decisão ou intervenção. Faz isso acidentalmente, dirão alguns, conforme o embaralhar do acaso; seguindo cuidadosamente as coordenadas de um plano, dirão outros. Mas, inevitavelmente, a despeito de nós.
   
    E, no entanto, é raro que o resultado final de um jogo seja determinado pela mão inicial com que os jogadores saem. Não é necessariamente vitorioso quem foi favorecido pela ciranda primeira das cartas, nem sempre termina perdedor aquele cujas cartas primeiras a sorte atraiçoou.
   
    Há vários fatores orbitando poderosamente no entorno, de maneira possível a cambiar as rotas do jogo. Há quem seja hábil jogador, conservador, cauto, ou mui amigo do risco, que tenha senso de oportunidade e faça o melhor de sua humilde origem, contrariando magistralmente as probabilidades de seu início, motivado pelo desafio do adverso. Há quem, pelo contrário, desperdice suas vantagens de partida com jogadas imprudentes, descartes tolos, apostas soberbas, uma atitude de preguiça para com o jogo, subaproveitando suas opções.

    Há quem seja o jogador-dançarino, que saiba improvisar e afine sua tática acorde ao jogo que se apresenta, ganhando em sua capacidade de adequação à situação vantagem intransponível. Há quem seja o jogador do ritual, que tenha seu jogo de antemão todo coreografado e se veja desconcertado quando as contingências pedem outro ritmo, outro rebolado, outra estratégia.

    Há quem seja exímio trapaceiro e termine com mais pontos por meios escusos; há quem seja tão escrupulosamente honesto que renuncie a uma vitória que ocorra desta moda, ou se recuse a ver o artifício daquele que o ultrapassou ilegalmente porque crê que foi enganado por seus olhos, não pelo outro, de quem não espera outra conduta senão uma gêmea da sua.

      Há quem preze mais pelo momento do jogar que pela sua culminância, seu resultado, e nessa sua atitude carregue já os louros, a satisfação e o sorriso de uma vitória inconteste.

    À medida que o jogo corre, ambas as partes podem transfigurar completamente sua mão, através de jogadas que escolhem ou das quais se abstêm, daquilo que o capricho do baralho lhes reserva, de um bom ou mau trabalho em equipe. Este que ora soma e constrói, suprindo mutuamente carências, equilibrando faltas e erros, potencializando lances e possibilidades doutra forma apenas bons; e ora diminui e naufraga, contrabalançando pequeno ganho com grande perda, momentânea desorientação com permanente desnorteamento.

    Às vezes, um completo desentendido faz um comentário embriagado milagrosamente oportuno que esclarece o que fazer a seguir e dá um rumo belo e acertado àquilo que parecia não ter nenhum. Outras vezes, o conselho bem intencionado e carregado de precisão lógica daquele querido e sabido amigo sopra sobre si os ventos do buraco e o leva ao erro. No decorrer da jogatina, sinais do adiante aparecem e desaparecem, e as percepções e leituras diferentes que cada um faz deles conduz suas jogadas, concentra ou diverte a atenção e a energia no jogo.

    É claro que tanto mais argúcia, fortaleza e persistência são necessárias quanto mais desfavorável for a distribuição inicial das cartas. É claro também que é exatamente nesta circunstância do desprivilégio que uma pessoa tem a maior oportunidade de se revelar, construir-se melhor jogador - pois é feito muito mais comum jogar bem com boas cartas que com más. E é ao preterir o choramingo pela ação, o resmungo pela atividade consciente e bem direcionada com as cartas que se têm que uma pessoa constrói um jogo, senão absoluto e último vencedor, digno, prazeroso e bonito - de se ver e jogar.

quarta-feira, 14 de junho de 2017

A ditadura da obrigação

                                       


  Tem muita gente que se fere, se encarcera, se mutila, se encorcunda com o peso da obrigação que coloca sobre si mesmo. E esse tipo de dano, o autoinflingido, é o mais delicado. Enfermidade de mais difícil cura, hábito de mais difícil abandono. E o tipo de dano seu derivado, partido de um motivo imaginário para uma punição real, é o que mais nefastas cicatrizes deixa.

    Obrigação é palavra dura que nos sai da boca com maciez excessiva, dolorosamente leve. Obrigação. Briga. Ação. Ação de brigar. Obrigar. Ação de força. Por que é que achamos bonito dizer que temos muitas obrigações? Por que exibimos a lista dela como troféu de exuberante beleza, conquistado com graça e mérito?
   
    Creio que por duas razões. A primeira, de raiz; a segunda, de seiva.

    Originalmente, no latim “trabalho” significava tortura. Sim, a palavra que usamos para designar a ocupação-mor de nossas vidas; a tarefa remunerada ou não que designa nosso lugar econômico e social no mundo e modela nossa personalidade; a realidade que usamos como aposto ao dizer quem somos... Significa, em sua raiz, tortura. Aquilo que machuca, que violenta, que molesta. Que dói e deixa marcas. Não é grande salto, portanto, dizer que a concepção primeira e mais tradicional que cultivamos acerca do trabalho é a pior possível. E hoje, por mais pulverizado que esteja em seus cenários de ocorrência - público ou doméstico, em horário integral, parcial, flexível -, por mais espertos que estejamos em perceber que podemos sair desse casulo... Ainda não o superamos, de todo. Seguimos com a raiz do trabalho obrigado bem fundo no pensamento.
   
    O segundo fator que creio poder explicar nosso prazer masoquista em inventariar obrigações é menos clássico, menos etimológico, mas não menos profundo. Quando o capitalismo começou sua ascensão ao trono do mundo, precisou fazer germinar nas pessoas o culto pelo trabalho, pela ocupação produtiva. Pois, anteriormente a esse reinado, as horas gastavam-se com mais despreocupança, mais folga. Mais festas e rituais, mais reza, mais sossego. O trabalho não necessariamente estava vinculado ao dinheiro, mas ao atendimento direto de necessidades, e muitos dos “produtos” cultivados não demandavam em seu processo produtivo a ideologia da disciplina, do controle, da chibata horária, do arreio da obrigação.
   
    Desde a consolidação dessa dinastia, contudo (que já há algum tempo felizmente passa por problemas escabrosos) passamos a acatar seus ditames, considerando deselegante a antes tão normal ação do nada. A inação. A ante-ação. O ócio.

    Tanto que ócio desusou-se, preferido por vagabundagem. Seu correlato, vagabundo, é palavra com que enchemos a boca para maldizer alguém, muito desvirtuado, mal exemplo. A situação é tão áspera que, por pouquinho montante de tempo que roubamos das obrigações para dar-nos de presente e carinho a nós mesmos... já nos vem a dona culpa assediar-nos, sussurrando a mortal ofensa... “vagabundo!”

    A situação é tão ingrata, descarinhosa e burra que ficamos competindo entre nós, a ver que ganha o campeonato da obrigação, possui maior coleção dela, e dela extrai maior sofrimento. O choramingo pelo tanto que se tem a fazer, o quão árdua é a empreitada, quão supremo seu poder de sugar todo o ser de sua energia, vida, tempo e alegria... Tornou-se quase extensão do cumprimento diário entre muitas pessoas. E o contrário, dizer-se alegre, manejando seus afazeres sem dor, concluindo tarefas com gosto, e talvez sobra de tempo, pela boa administração dele... É o sacrilégio. É feio, de mau gosto. Uma afronta. Coisa de vagabundo.
   
    Há que se revoltar, minha gente, contra o protocolo da obrigação, o receituário de sofrimento que prescrevemos a nós mesmos e aos outros estupidamente. Há que vedar os lábios para impedir o mal uso desta palavra dura, pesada, vultosa, indigesta. Há de usá-la com ciência e parcimônia... Há de... Desobrigar-se um pouco, e desobrigar o outro também. Mas por vontade e consciência, é claro, não por obrigação.

Obra: Saturada. Gabriela Lemos. 2017

quarta-feira, 7 de junho de 2017

Futebol de moleca e lição de (semi)adulta: a economia das emoções

                                                         
  
   Quando era eu jovenzinha, ou talvez nem tanto, apenas um pouco mais que agora, mamãe me cercava com olhos assombrados, coração buliçoso a palpitar no apelo de voz inteira. Ia eu futebolearme, entre outros deportes mais, e ela se preocupava. Por que vai com tanta gana? Vai se machucar desse jeito! E pode ser feio! A violência do meu ritmo, da minha entrega, lhe assustava. 

      Eu corria, trombava, dividia, passava, corria mais muito, entrava com tudo e saía com não menos que isso. Minhas energias estavam doadas, mas não me eram exauridas. Eu não tinha mesmo limites. E tampouco medo. Adentrava-me de corpo inteiro em qualquer jogo, qualquer campeonato, qualquer treino. Se não fosse para ser assim, de modo nenhum seria. E não era por cálculo: a ele desde sempre pareço não conseguir me amigar. Eu sou assim. E nunca quebrei um sequer dedo no ginásio. Mamãe não precisava se preocupar.

      Na quadra da vida, os quinhentos são outros. Ou, aliás, eles também nem tão outros, talvez agora somente um pouco diferentes de então. Ainda sou incapaz de cálculo ou parcimônia de energia. Mas não sou incapaz de sentir cansaço, nem herdei do esporte à vida a blindagem que me escudou (milagrosamente) de lesões. A entrega não se amenizou, leal ao que deve ser minha selvagem natureza, mas os machucados vieram. E suas quelóides, casquinhas e ardências trazem-me a estas palavras.

       Elas, que, porém, não se tratam com ou de lamentos. São pensares de forma e cores neutrais, espelhadas apenas a enxergar e reconhecer o que refletem. Sem a isso esquivarem olhar ou esboçarem careta.

      Eu sou assim. Ligeira a envolver-me no calor da emoção. Destreinada em poupar-me a um tempo seguinte, uma partida talvez mais oportuna e mais decisiva. E isso tanto me torna mais suscetível a danos quanto a memórias mil. Quem vive sem intensidade, eu suspeito, não produz viva lembrança. Quem não lembra rara vez de fato viveu. Ou viveu com frequência e constância uma vida lamentavelmente rarefeita. Aguada. Insossa.

      Quem não se lembra tampouco aprende. E, ah, eu me lembrarei! Muito já me marca, atestando-me intensa vivente e intensa aprendiz. Nem que quisesse conseguiria fugir do que já me foi absorvido pela esponja aluna da alma. Da consciência, agora tímida mas em sólida formação, de que certos princípios regem a economia das emoções. E violá-los causa crise custosa de vencer e austeridade desnecessária de enfrentar.

      Por exemplo, só se gasta sem limites se a reposição é pronta e igualmente contínua. Como quando eu era jovenzinha a esportear. Do contrário, cabe dispêndio sábio. Cabe avaliação de riscos. Se o risco é alto demais, e a incerteza do início ainda não deu a aprovação confiável do tempo, não é de mau gosto investir com cautela e resguardo. A intensidade não precisa atenuar-se ou esmaecer-se. Só é preciso levar em alta conta e com respeito o montante a ser tomado da receita da entrega.

      Por outro exemplo, tanto é mais saudável a transação quanto mais simétricos são os valores e as quantias envolvidas. É incomum bom e longevo resultado de relação entre partes muito distintas. É inusitado o sucesso de ligação em que a prosperidade, o crescimento - de si, do outro e de ambos - não é prioridade fundamental e igualmente considerada do empreendimento. E ainda mais singular um superávit emotivo entre lados que investem quantidades e profundidades muito díspares na construção de seu nós.

        Nossa energia é bem valioso demais para ser dissipado na imprudência, no descuido, na simples falta de uma equilibrada avaliação da situação, de perspectiva coerente do que se vive. Se do cálculo ainda me acerco com distância, a balança consigo manejar com mais crença, e mais ciência. Creio estar agora pesando o gasto das minhas emoções e entregas, avaliando o quanto elas valem e do quanto delas posso me desprender. Com o fim de tê-la o mais sempre possível num emocional favorável.

      Enfim, mamãe não precisa se preocupar. Aos poucos, a gente aprende. Estou aprendendo. Viver é como jogar bola: na arena, o coração bate forte, o corpo e a alma se envolvem, a gente se expõe a emoções de todo tipo e toda intensidade. A vitória alegra e recompensa, o empate acinzenta, a derrota frustra e entristece. A lesão dói. Mas logo sara. E o que a gente guarda é fruto da inteireza, da vivacidade, da entrega com que estivemos em quadra.

    O pior que pode acontecer são as trombadas estrondosas no meio do caminho. E mesmo da fratura a gente se recupera. Pra voltar a jogar como antes. Ou, com alguma sensatez e boa lição de economia, muito melhor que.

quarta-feira, 26 de abril de 2017

A praça

                                                                             
 
    É aí onde estão os patins e patinetes, correndo alvoroçados e risonhos, lambuzando-se de liberdade.

     É aí onde estão os bebês, no colo e nos móveis berços, encantando-se com as luzes do dia, os movimentos da vida e os barulhos e olhares das pessoas.
   
     É aí onde estão os avós, papeando entre si lá as suas doenças e seus remédios, os acontecimentos grandíssimos de suas vidas e da vida daqueles que amam, olhando sem inveja e com carinho a juventude juventudear-se.

     É aí onde estão os enamorados, em busca de um canto que seja a música para a melodia de algumas palavras baixinhas, o palco do singelo espetáculo de toques furtados, ou o cenário para a exibição de sua felicidade aos olhos alheios, que deles em verdade se fogem.

     É aí onde estão os papais, despreocupados de pula-pulas onde saltitam seus pequenos com a alegria colorida de toda a vida que ainda lhes é inédita.

     É aí onde estão os sós, sem laço nem melaço, sem intranquilidade nem drama, a observar seu entorno, somente e completamente estando.

     É aí onde estão as mentes, lúcidas ou desvairadas, daqueles cujos corpos vagamundam, e cujas palavras não raro teatrais e saracoteantes, longe de ferir a paz do recanto, são parte constituinte dela.

     É aí onde estão as pipocas, craqueteando-se nos gustadores das pessoas, decorando suas fileiras dentais, passeando pelo chão sempre acolhedor da praça.

      É aí onde desagarram-se as leituras, regadas pelo respiro de vida, a escuta piada do sabiá, da fonte, do cosmos humano e não humano a rebolar-se calmeiro.

      É aí onde passam e ficam as pombas, disputando os grãos e farelos minguadamente disponíveis e as hostilidades das pessoas pouco amenas, pouco escassas.

     É aí onde estão os sorveteiros e seus simpáticos gritos propagandísticos. É aí onde estão as massas de nuvens coloridas que as crianças tanto apreciam e os adultos fingem não apreciar tanto.

     É aí onde está a preguiça do domingo, a sonolência do almoço findado, o charme do roçar doce da tarde que se achega. Aí onde esperam reservados uns minutos calmeiros escapulidos da pressa da semana e dos agitos sabadisticos.

     Aí onde a eternidade da vida cabe, pouco mudada pela caminhada dos séculos.

quinta-feira, 20 de abril de 2017

A saliência dos contornos e a poupança da verdade

                                                           

     Desde muito cedo, talvez não cedo suficiente, aprendemos a lidar com os diferentes usos públicos que fazemos do dinheiro. Por exemplo, somos instruídos por nossos pais e avós (quando louvavelmente cautos) a não fazermos espetáculo de item comprado com vultosa soma ou de alguma vultosa soma em espécie. Por segurança, para não colarmos em nós mesmos a perigosamente invejada marca da abundância. Porém, não nos preocupamos em demonstrar, em símbolos adquiridos ou em viveza de moedas, quantias humildes que são do acesso de todos, que não impressionam, não destoam do comum, não carimbam marcantemente a memória de alguém.

    Ultimamente tenho reparado que o mesmo deveria se processar com vivências e traços de personalidade, de nós mesmos e das pessoas à nossa volta. Devíamos economizar aquilo que manifestamos.

      Do que estou falando? Com exemplos, o argumento ficará mais claro.

     Já reparou que, quando algo dá certo em nossa vida, um plano ou um relacionamento, nosso primeiro impulso é contá-lo a Deus e o mundo? Queremos que quem nos ama saiba como estamos felizes, e quem nos odeia também. Queremos compartilhar nossa experiência e alegres sensações com quem nos é caro, despertar o olhar invejoso e despeitado em nosso desafeto. É nossa mais comum reação, até certo ponto compreensível. Gostamos de exercer poder sobre um outro, mesmo ou principalmente se for este o de machucá-lo, bem como de comunicar uma experiência que estamos tendo.

    Porém, mais sensato seria se fizemos o contrário. Muito calássemos, pouco falássemos. Tesouros nós são roubados muitas vezes pela informação que a seu respeito deixamos, sem querer, circular. Ou pela nossa insuportável alegria em tê-lo, que um (des) semelhante deseja para si, e tenta alcançá-la através do meio que nos causou-a, exatamente, tomando-o para si.

     Parecido ocorre com características - de pessoas ou coisas. Nossas palavras delineam realidades, com um poder de criação que barbaramente subestimamos. Elas dão contornos, inventando e criando traços que já estavam ali, mas antes indefinidos, fundidos ao todo.

   Ao dizermos a nós mesmos que somos inúteis gastadores de tempo e nada que preste conseguimos realizar, malgrado tenhamos absurda fartura dele, de fato nada faremos. Se dissemos a nós mesmos que somos plenamente capazes de cumprir o prazo desafiador que nos foi dado para certa tarefa, passaremos a obrar nessa direção e, no final, teremos cumprido com folga o limite já folgado. 

     Se dizemos a alguém que o que menos gostamos em si é seu jeito de fazer interjeições debochadas e cruéis, só o que veremos com esse dispêndio infeliz de sinceridade é que o traço se acentue e se saliente. A pessoa, que talvez nunca tenha se dado conta de possuir tais formas de expressão, passará a reparar nela e a efetuá-las. Repetir o padrão de comportamento que supostamente identificamos, replicar a realidade que na verdade estamos gestando com nosso bisturi delimitador das palavras.
  
    Uma das maiores dificuldades do ser humano é entender-se em meio ao seu caos, delinear características que é o definem em meio à sua névoa, a seu conjunto de luzes sombras, à sua metamorfose, à sua multiplicidade. Quando alguém, ou esse próprio alguém, se apresenta com uma receita, uma leitura pronta e fechada do ser, o mais fácil e quase inevitável é segui-la. É tão difícil e angustioso viver sem delimitar suas próprias fronteiras, sem assinar sua identidade, que pouquíssimos de nós contrariam alguém que faz isso por nós, por favor, por caridade. Por imprudência comunicativa, por desatino palavrório.

      Um indivíduo alcança sapiência e grandeza, assim, quando não se deixa usurpar de amores, viagens, memórias e projetos pelo desperdício imprudente de palavras. Quando sabe poupar o outro da exteriorização de um negativo julgamento, se não absolutamente necessário, porque sabe do poder de suas palavras em moldá-lo. Quando não se deixa generalizar, perdendo o que há de infinito em si ao circunscrever-se, limitar-se seguindo a prescrição de outros, se fazendo em conformidade com a imagem recortada e incompleta que alguém vê de si e congela.

quarta-feira, 12 de abril de 2017

A lição do valete de copas

                                                          

  Era tarde, uma agradável tarde de verão alongada pelo comprida luz natural do dia e pelo esperto horário humano que se ajusta para aproveitá-la. Eu ainda tinha lá a idade em que o grande gosto da vida era brincar junto da molecada da rua e apostar pra ver quem ia pular o muro do vizinho e enfrentar seu pouco simpático cão para recuperar a bola. Ou, quando a coragem ajudava, para roubar um punhado de mexericas que chupávamos como se fosse o néctar dos deuses e, quando sobrava, exibíamos em casa como troféus de grande aventura.

    Devia ser fim de ano, época em que a família se ajunta. Depois do café com pão e conversa fresquinha, sentamos para jogar baralho: eu, minha irmã e duas tias da minha invejável coleção delas. Cada tia parejada com uma de nós, meninas, claro, para dar um páreo bom. Lembro da ocasião com detalhe, com a viveza típica de memória de criança e de momento marcante.
   
    Certa rodada, minha mão veio com uma sequência de jogo admirável. K,Q-10,9. Rei, dama, dez e nove de copas. Faltava o valete. Quem joga buraco sabe que jogo com números baixos no contar final vale menos, acima de 7 vale mais. Fora que a carta desenhada é mais bonita que aquela só com números. Eu era uma criança encantável e gostava de ganhar. Queria o valete. Estava determinada a conseguir o valete.
   
    E fiz por onde achá-lo! Evitei lixar durante toda a rodada, para não encher a mão de muambas enquanto podia estar comprando e conseguindo o valete. Deixei passar descartes desatentos da minha irmã que completavam o jogo da minha parceira porque precisava comprar o valete. Aliás, até esqueci que tia Zinha era minha dupla, e eu precisava jogar em dupla.

    Também não prestei atenção que minha irmã e tia Lourdes foram avançando no jogo, pegando o morto e podendo logo encerrar a rodada muitos pontos à nossa frente. Nem preciso dizer que ao comprar, e seguidamente não ser premiada com o valete, descartei partes de pequenos joguinhos que se formavam, talvez um 5-4-3 de espadas. Mas eles não valiam o que meu jogo grande valia. Ou valeria, se tivesse acontecido. Se o bendito valete tivesse dado as caras. Não deu.

    A rodada logo terminou com saldo minguado pra nós. Pontuamos muito pouco, quase nada. Porque tia Zinha jogou sozinha e eu joguei fixada no fantasma do valete, o que lamentei abertamente, com direito a carranca emburrada e muxoxos variados. Não deixando passar a ocasião para valoroso conselho, minha tia-parceira se pronunciou. Perguntou se eu tinha entendido porque perdemos tão feio, e percebido que deixei passar várias oportunidades, deixei escorrer o jogo inteiro por causa de uma única carta. Que nem encontrei.

    Então, eu corei. O rosto ardeu e os olhos procuraram o chão como acontece com quem sabe que a lição cabe, é bem dada. Nunca esqueci aquele dia. Mas, passados alguns anos da minha era de moleca, de novo eu quase me peguei remoendo um valete de copas - que não era carta de baralho. Felizmente, percebi a bom tempo. E quis abrir aqui essa conversa.

    Quantas pessoas não sofrem com valetes de copas? Quanta gente não quer tanto ir a um determinado show, ou viajar a um evento específico, tão longe no futuro, que se fecha a qualquer oportunidade de diversão para poupar dinheiro para a meta e deixa de aproveitar as presenças da vida?

    Quanta gente não se encasqueta com um caminho pré-definido de carreira, um concurso, e passa batido por várias outras opções que aparecem e não raro descaradamente se oferecem, se insinuam? E deixa os anos passarem num estupor sem mesmo aproveitar a escolha? Quantos de nós não cismamos tão doentiamente com um par maravilhoso que não conhecemos mas mentalmente criamos que nem enxergamos a talvez igualmente maravilhosa pessoa que divide conosco elevador todos os dias?

    A falta de foco produz imagem de reduzida qualidade e um caminhar vagueante, de que tiramos pouco proveito. Mas o excesso de foco tampouco resulta num harmônico conjunto. Deixa borradas partes da vista que subtraem dela o seu possível sublime. Deixa a gente blindado, impermeável, ensebado de certeza e obsessão. Barrando com um escudo revestido de burrice o encanto do inesperado.

    É bom deixar espaço para o inesperado. Para as várias possibilidades. Não condicionar o olhar buscando um só elemento do horizonte. Não estreitar a visão, perfeitamente capaz de abarcar primeiro, segundo e terceiro plano, centro e periferia, com sábia perspectiva. É apenas sensato não se esconder da oportunidade ou bloquear sua aparição. Alforriar o espírito da fixidez e a vida do roteiro traçado.

    Às vezes, o universo sabe melhor que nós o que é melhor para nós mesmos. E o que visualizamos não nos convém tanto quanto aquilo que se intromete, que improvisa, que surge antes de qualquer expectativa, qualquer plano. Ou contra eles.

    Quando precisamos deles, sinais aparecem. Alternativas. O universo pode ser, se quisermos, um multiverso. Mas é imperativo nos permitirmos perceber. Tirar a venda e a anestesia que o valete de copas pode nos colocar. Cuidar para que ele não nos enfeitice para a vaziez da linha reta, acabe trancando portas e janelas. E nos fazendo perder rodadas tristonhas de um jogo de baralho, indo para o buraco...

quarta-feira, 22 de março de 2017

O orientalismo do século XXI

                                                              
        
   Minimalismo. Mindfulness. Meditação. Yoga. Silêncio da mente. Pipocas que estão estourando quentinhas no recipiente do tempo presente. Estejam seus sons despontando percebidos ou impercebidos, fato é que seu olor destila-se no ar em nosso redor com força estonteante. E os por quês de nossa avidez por respirá-lo pululam interrogantes no horizonte de quem tem mania de detetive.

    Creio ter topado com um possível ensaio de resposta.

    A vida nativa digital coloniza nosso imaginário, nosso corpo e nosso espaço. As coisas nos possuem, nós não as possuímos. Temos que ter. E temos que fazer. Não temos mais a ousadia de reivindicar o direito ao tédio. A monotonia e a contemplação rareiam, tornam-se fator de alergia que inquieta e irrita a alma da gente. 

     Estamos sendo artificialmente adestrados todo o tempo. Passamos larga porção dele em espaços condicionados, salas de cinema ou parques de diversões ou academias, que tentam simular em nós percepções e sensações que mais genuína e arrebatadoramente poderíamos sentir ao ar livre, exercendo nossa liberdade, a plenitude de nosso corpo, nossa imaginação.
   
    O horário de trabalho é o nome fantasia que batiza a mão cheia de horas que passamos por dia no local determinado de labor. Contudo, ele jamais termina. O celular acusa o email que se recebe com o compromisso que se tem; as férias são passadas planejando o trabalho a ser feito na volta; o final de semana é interditado pela possibilidade de concluir, através de dispositivos infelizmente móveis aos quais contraímos vício, pedaços inconclusos da semana anterior. Ou adiantar serviços da próxima.
   
    Não temos mais corda no pescoço ou chicote nas costas, mas a cobrança introjetada na cabeça perpetra crueldades de grandeza aproximada. O estado de alerta nunca nos deixa. A sensação do dever “devia estar estudando, devia trabalhar mais, devia estar ocupado em vez de perdendo tempo com nada” é uma ladra que sequestra nosso momento presente sem deixar sequer margem para resgate.
   
    Não desfrutamos do que vivemos, da companhia daqueles que estão a nosso lado. Nossos sentidos parecem anestesiados para às pequenas belezas cotidianas, como uma brisa acariciando as folhas das árvores ou o rosto da gente, a meninada saindo da escola em algazarra, o sol dizendo seu adeus ao céu maravilhosamente nostálgico...

    Diante de tudo isso, do frenesi, da auto-tortura, da vida passando borradamente sem que possamos de fato percebê-la... A gente pára. Felizmente, a gente pára. Repara que qualquer organismo vivo maltratado - com energias ruins ou substâncias pouco nutritivas -  sucumbe. Adoece, perde o viço e a cor, expira. Se até a máquina, que consideramos quase imbatível, se rende, murcha, cai enferma por uso abusado, exagerado, descuidado... Nós com certeza não somos menos vulneráveis.

    Venturosamente, começamos a entender que, se corpo e mente e espírito estão em desalinho, e de modo tão constante, a existência se torna fraudulenta. Farsante. Uma obrigação que nos impomos e que cumprimos mal, sem gana ou gosto, sem inteireza. Uma ação mecânica que realizamos sem presença. Por inércia.

    É neste momento, eu acredito, do tímido mas importantíssimo despertar, da consciência de si mesmo e da loucura que é a tentativa de seguir o fluxo sob a custa da própria saúde, da própria potência de viver... Que nossos olhos se voltam à sabedoria do leste. Ao oriente.

    É historicamente registrado que o exercício que por lá mais se aprecia é aquele que torneia o pensamento, não o corpo. Aquele que enleva o espírito a uma beleza transcendente, a um silêncio pleno, ao seu infinito interior, sem ruídos ou interferências. Aquele que conecta o ser consigo, e o ensina que ele é capaz de ignorar toda a perturbação que levam-no a rumo contrário. Porque ele tem toda a força em si, só precisa descobri-la.

    Esse exercício, essa filosofia de paz, nos convida ao desapego. Porque não precisamos de uma coleção vultosa de coisas ou de multidões cercando-nos, quanto fazemos boa companhia a nós mesmos, sintonizados com nosso "eu". Assim, além da correria e da cacofonia diária, das pretensas obrigações que nos cerceiam, aprendemos a nos emancipar das posses. Daquilo que mais entulha nossa vida do que a ela acrescenta. Daquilo que esconde os escombros de nossa alma, desbota as nossas emoções ou delas nos afasta. O essencial está dentro de nós. O resto é resto.
   
    O orientalismo deste momento do século XXI, portanto, creio, é uma reação. Uma adaptação evolutiva que desenvolvemos para sobreviver salutarmente à cadeia predatória da modernidade acelerada. Da ditadura das coisas. Elas que nos distraem de nós mesmos, nos engolem, nos sufocam.

    A adesão ao orientalismo é uma decisão que um crescente número de nós escolhe tomar, no lugar de remédios. É um carinho que nos fazemos, um caminho que trilhamos em busca de silêncio, calma, equilíbrio. Uma opção que, depois de ser bóia de salvamento, se torna modo de viver. Um modo surpreendentemente tranquilo de viver, mesmo nesse mundo tão tresloucado.

quarta-feira, 15 de março de 2017

O que será que seria? ou O moderno arquipélago dos encontros perdidos

                                                             
 
  Hoje, encontrei um desconhecido no ônibus. Dentre muitos com quem estive e me desencontrei, encontrei este rapaz. Estava com uma discretamente encantadora camisa mostarda, tinha óculos de moldura original que decoravam bem seu rosto viçoso de moço. Cabelo aparado com asseio, esboço de barba agradavelmente despreocupado.

    Seu chamariz principal, porém, não estava em si: ele lia Madame Bovary, cativado. À espreita, por sobre seu ombro, reli com ele as derradeiras páginas: a morte de Emma, a contemplação do cadáver, da tragédia, o fechamento certeiro com curioso sabor do inevitável. Queria abordá-lo.

    - Bom esse livro, não é?
    - Sim. estou quase acabando, mas já posso dizer que adorei.
    - Do que gostou mais?
    - Ah, não sei... De tudo. A linguagem é ótima, com suas pontadas naturalistas;  a história é bem conduzida; as personagens são densas e reais...
    - Também senti isso. É impressionante como a gente consegue empatizar com eles, embora sejam tão diferentes entre si e tão, tão imperfeitos...
    - É bom, né, quando a gente lê um livro que envolve e cujas personagens respiram, criam corpo dentro da gente...
    - Sim! Já leu Anna Karenina, ou O retrato de uma senhora? Têm o mesmo tema e a mesma concretude.

    Ele lia, absorto. Como podia, com tanto sacolejo? Mas como não poderia, com tão hipnótico material literário ante os olhos? Ele prosseguia sua leitura, eu prosseguia meu teimoso silêncio. A hesitação me carcomia o espírito, e numa manhã tão bonita!
   
    Conversava com ele, apenas mentalmente. Ensaiava o timbre imaginário de sua voz, sua insistência irritantemente correta em dizer “as personagens”, ao invés de “os”, que é o que sempre me soou mais natural e agradável... Via um simpático entusiasmo tingindo seu rosto diante da inesperada abordagem, de tom inesperadamente literário....
   
    Mas será? Será que assim será? Ele tem tanto os ouvidos quanto os olhos ocupados, afinal. Esqueci de mencionar esse detalhe... O fone é um sinal vermelho à conversa? E a fascinância que as páginas claramente lhe causam? Tenho eu o direito de quebrá-la, de me intrometer ali com meu potencial incontestavelmente menor de fascínio que a obra de Flaubert?

    Pigarrei, clareei a voz. Molhei os lábios. Está começando a ficar ridícula essa tormenta. Quero fazer isso, e agora tenho que fazer isso, ou nunca saberei o que será que seria, e serei perseguida pelo lampejo desse pensamento por dias.

    Quem não desespera com o que não foi, mas poderia? Abri a boca. Engasguei e mordi a língua. Fui empurrada. O nosso caríssimo levador automotivo cuspiu gentes, e as que restaram queriam desespremer-se. Naturalmente, fui empurrada. Arredada. De modo até gentil, é verdade. Fui separada do meu desconhecido, por muitos outros desconhecidos. O pé bateu, pisando a frustração.
   
    Não acredito! Demorei tanto pra vencer a hesitação civilizada, o limiar convencional e cerimonioso da solidão compartilhada... e quando enfim ia fazê-lo...  Fui levada pelo fluxo a voltar à ilha de mim mesma. Ao meu normal e, parece, pavorosamente inviolável retiro.
   
    Daqui a pouco mais uma leva grande de ilhas vão sair, eu posso nadar até ele outra vez. Vou dar um jeito de falar com esse moço! Agora está na janela, não no corredor, ele também empurrado pelo espetacularmente vasto e ansioso desfile insular. Mas isso não será impedimento.

    Saíram as pessoas. Fui. Abordada por uma pessoa, uma colega que não tinha visto, que tampouco tinha me visto até então. Nosso ponto é o próximo. Ai, mas logo agora! Posso deixá-la com uma desculpa e adiar minha descida. Mas a conversa adiada confinada num curtíssimo tempo não vai render. Seu começo já será terminal e eu ficarei amargando na boca a avalanche do tempo, que pagará minha indecisão com sua fuga e cobrará o doloroso tributo do não vivido. Eu ficarei amargando na boca a força da social correnteza, com sua textura acelerada, que é de uma fortaleza com a qual a individual fraqueza - o titubeio, o receio, as pequenas timidezes - não pode lidar.

    O consolo? Não somos nós, eu e o moço-leitor-de-Flaubert-vestindo-camisa- mostarda, as únicas ilhas que se desgarram pelo oceânico empurrão das gentes modernas, apertadas e apressadas, coletivamente separadas no mesmo espaço pelo hábito do cordial silêncio. Somos partes de um todo, que padece do mesmo mal do encontro perdido, e rara vez é presenteado com o respiro do encontro acontecido. Saber que não se sofre sozinho é sempre um carinho culpado que suaviza o sofrer.

     Outro consolo? O encanto não foi quebrado. De pensar que eu poderia tê-lo feito, ao abrir a boca e deparar-me com ouvidos relutantes em ouvir-me, ao tocar seu ombro e deparar-me com olhar murado, pouquíssimo receptivo à minha aproximação indesejada, penetra naquela leitura tão feiticeira, tão reservada...

     Por não ter concretizado o que o devaneio conjurou, nunca saberei de fato o que a concretude me reservaria. Se a conversa real seria mais rósea ou mais cinza que aquela que imaginei, a atitude do rapaz mais aberta ou mais cerrada que aquela que visualizei, sua voz mais calorosa ou mais fria que aquela que em matinal sonho ouvi. E assim posso brincar com a ideia do que será que seria... E deixá-la tão viva e mutante, tão bela ou tão feia, tão engraçada, ridícula ou catastrófica quanto minha imaginação desejar...

quarta-feira, 8 de março de 2017

Solteirona - o direito de escolher a própria vida

 
   Uma mulher adulta sorri um sorriso que rebrilha a um só tempo a jovem maturidade e energia. Está sentada num sofá dourado, relaxada e elegante. Traja um vestido de caimento delgado e seguro. Tem numa das mãos um par de xícara e pires adornado com requinte. Esse par, juntamente a seus sapatos confiantes, o caloroso estofado, o pequeno móvel ao lado com um busto em miniatura, relógio e porcelana, sugere bom gosto, apreço pelos detalhes, e a suficiência financeira - de dinheiro e tempo - que permite desfrutá-los.
   
    Seus olhos estão fechados, no crepúsculo de um piscar. A expressão transparece o pensamento arrebatado por uma lembrança engraçada. Ela está voltada para si mesma. E, num enquadramento fechado, ocupa o centro exato da imagem. É a ela que todo olhar imediatamente converge.

    O conjunto é harmônico e agradável, mas nada específico em sua composição nos diz em absoluto que se trata de uma mulher solteira. À exceção, é claro, da mão esquerda pousada suavemente sobre o joelho em decidido destaque, no front visual da cena: seus dedos nus são a evidência gritante da solteirice.

    Como a feliz ilustração de capa, assim também é o livro. Seu foco é menos na escolha do status civil do que na escolha da vida que a autora queria para si, e sua jornada até descobri-la e aceitá-la. De modo algum uma evangelização do “jeito solteiro de viver”, a obra é um apelo poderoso e certeiro ao autoconhecimento, à autonomia das nossas escolhas face à massa de ar social que tenta controlá-las, soprando nossa vida a um lado ou outro, por vezes para longe de nós mesmos. E sem que nos demos conta.

    Kate Bolick inicia passeando por sua infância e juventude pelo carrossel das palavras de maneira agradável, confessional, reflexiva. Leve, e levemente profunda. Revisita conosco suas primeiras experiências de solidão prazerosa e de fases enamoradas, a concepção de intimidade e companheirismo de que sempre foi cercada e como ela moldou suas necessidades emocionais.

    Rumo à idade adulta, começa a perguntar-se como pode entender a si mesma, conhecer-se, tornar-se madura e independente realmente se sempre foi (e continua sendo) cuidada e acompanhada por alguém, ou vários alguéns. Seus pais, seu irmãos, seus namorados. Começa a perceber como sente falta da sua própria companhia, em regime de exclusividade, e como anseia pelo desenvolvimento de seu eu, pelo reconhecimento de sua identidade. Como, sobretudo, suspeita que esse desenvolvimento não casaria bem (casaria?) com um compromisso incondicional a uma pessoa, e às futuras pessoas advindas desse compromisso.

    Embora o mais saboroso do livro, para mim, tenha sido mesmo esse desvelo da sua trajetória pessoal - os questionamentos de si consigo ao longo dos anos de quem era e de quem queria ser, os contínuos sinais de que o script universalmente aceito para mulheres como ela não lhe cabia particularmente - isto não é o que torna Solteirona uma preciosidade.

    Seu maior trunfo, pois, é a aliança deste desnudamento pessoal à história de cinco “despertadoras” e a um exame apurado e pertinente das condições histórico-sociológicas da solteirice feminina ao longo de diferentes momentos dos séculos XIX e XX. Sim, buscando entender seus desejos em relação ao casamento, à solteirice, à autonomia, a autora procura inspiração na história - na história de certas pessoas e da sua coletividade.

    Ela encontra, ao longo dos anos, mulheres norte-americanas solteiras (e escritoras) de outras épocas cujas reflexões lhe fazem companhia e dialogam com as suas próprias. Pesquisa a progressão das condições das solteiras através do tempo, as circunstâncias sociais que propiciaram sua ascensão ou bloquearam seu florescimento, a concepção da sociedade em relação a elas nos diferentes momentos.

    A consciência de Bolick do quanto as possibilidades das solteiras do presente deve às lutas das mulheres de passadas gerações que gradualmente abriram o caminho é louvável, exata, tocante. Sua percepção de como o contexto é absolutamente indissociável do percurso individual de cada uma, também sensível e precisa. A interlocução que realiza com suas inspiradoras ao longo de seus anos e suas questões, porém, me parece a mais esplêndida luz do livro.
   
    Ela nos mostra brilhantemente a potencialidade que a literatura tem de ser amiga da gente. Amiga que ouve, que dá conselhos, que sempre tem uma boa prosa (ou poesia) para nos dar, ajudando a amaciar (ou inflamar) diferentes indagações, angústias, anseios. Amiga à qual recorremos como guia, procurando lições, uma luz quanto ao caminho a seguir. Procurando o conforto do reconhecimento, da empatia, da proximidade.

    Ademais, essa deliciosa conversa realça a necessidade de positive role models em nossa cultura, não só de mulheres solteiras felizes e de sucesso, mas de pessoas em todas as condições minoritárias, diferentes, desviantes do padrão normativo. São esses exemplos que nos inspiram, que nos fazem acreditar que é possível, que nos expandem o olhar para caminhos alternativos e muito prósperos de vida. A ausência deles, muitas vezes, encaminha pessoas ímpares, singulares, a caminhos esmagadoramente comuns - simplesmente porque elas desconhecem outros. Infertiliza a imaginação da gente quanto a futuros possíveis, a opções disponíveis, em todos os aspectos da vida. Uniformiza destinos, empobrecendo venenosa e toxicamente a nossa natural pluralidade.

    Eu precisava ler este livro. Precisava degustá-lo com carinho e gosto, como fiz. Precisava de suas páginas a tocar a pele dos meus dedos e espetar a película de minha alma, como fizeram. Precisava da sinceridade tão sutil quanto brutal de sua narrativa, que permite perceber concretamente a insegurança, a hesitação, os passos cambaleantes de uma pessoa inteligente a escolher sua vida. A delinear sua identidade, sua individualidade, no embrenhado nebuloso de si mesma, em meio à voz social que se funde e se confunde com a sua, às expectativas que fazem sombra desagradável a suas decisões e indecisões.

    Eu precisava, porém, que mais gente lesse esse livro. O mundo precisava que todo o mundo lesse, senão este livro, um outro familiar desse. Ou vários outros. E lesse com frequência, com os poros abertos, com a alma às escâncaras. O mundo precisava ser um lugar onde toda mulher tem consciência de que é mulher e, antes disso, é gente. O feminino é adjetivo, não sujeito. Adjetivos caracterizam, não definem. 

    A mulher não precisa ser um "animal útil" no lar e ao lar, se não quiser, como tantas vezes refletem as inspiradoras de Kate Bolick. Não precisa ser esposa, mãe, avó, filha, somente.  Não precisa, por outra parte, deixar de viver cada uma dessas vidas, se as quiser. Mas precisa ser si mesma. 

    Antes de existir no feminino, a mulher existe no singular. Tem o direito, e deve tê-lo assegurado, a descobrir-se indivíduo. "Eu". Um "eu" afirmado, um "eu" interrogado, jamais um negado. Um "eu" diferente de todos os outros em redor, e ainda assim deles semelhante, com eles comungando. A exercer sua individualidade. A inventar-se, reinventar-se, desconstruir-se. Conhecer-se, desconhecer-se, reconhecer-se. Existir tão simplesmente como si mesma. Ou tão complexamente como si mesma. E não precisar aceitar que qualquer outro alguém lhe diga o que ser ou deixar de ser, o que fazer e não fazer, onde estar e onde não estar.

   Quer seja casada, quer seja solteira, divorciada, ou qualquer das nuances nesses ínterins, que seja LIVRE. Livre para escolher a própria vida.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

Ganas

                                                         
                                                                           
    Tenho ganas de me desfazer do que tenho. De fazer o que ainda não tenho e preciso, em vez de ir à via da compra. De me divorciar das posses. De só possuir o vento e ser possuída inteiramente por ele.
   
    Tenho ganas de me desfazer do que sou. De me demitir do meu cargo. De me desenquadrar da dedicação exclusiva de mim mesma.

    Tenho ganas de trabalhar como vivem os pássaros, desconhecendo no solo morada. Flexível. Com pousos leves e partidas tão leves quanto. Carregando como única certeza a viagem.

    Tenho ganas de ter mais ganas. De sonhar mais sonhos. E mais ilusões também. A utopia para nada serve senão ao mais importante: o movimento. O encanto colorido, brilhantoso e aconchegante do imaginar engravida a alma. Fertiliza a mente. Dá luz a reais realizações. É fecundação necessária.

    Tenho ganas de hipnotizar o tempo. De torcê-lo a meu capricho e majestade. De passear por um atraso, abrir brechas em suas voltas. De cirandar à vontade. De me enveredar moleca pelo (re)aberto campo da infância e o bosque da quase adolescência. Passei mui pronta por eles, deixando joelhos com ralados poucos demais para meu gosto.
   
    Tenho ganas de evaporar calendários e ignorar horários. Ter como única urgência os pedidos e chamados do corpo. Emergência, a minha paz. Banir a pressa por decreto. Condenar o cronograma a exílio perpétuo. Ele com seu cúmplice, o planejamento.

    Tenho ganas de despreocupar da história, ou de ocupar-me poderosamente dela. De não precisar confiar, apenas, que as linhas tortas escrevem certo. De conseguir não confiar desconfiando.

    Tenho ganas de superpoderes laboratoriais. De experimentar com minha constituição, fazê-la reagir doutra maneira. Misturar minha pureza, arredar minhas ideias, demover minhas paragens. Anestesiar minha cerebral hipertrofia. Esticar as minhas asas e os meus abraços, abrir os voos para mais longe e os braços para mais gente.

    Tenho ganas de arreganhar o coração, permitindo a todos a entrada. Sem restrições, condição de idade ou maturidade. Sem esgotar as vagas, dilatando para sempre a capacidade das cardíacas câmaras. Sem respeitar o quanto comporta, o quanto descomportam.

    Tenho ganas de enxugar minhas ganâncias, enxaguar minhas gangrenas, desganhar meus ganhos, gandaiar minhas perdas, engrandecer meus gametas e minhas gargalhadas. Tagarelas minhas gagueiras, sem vergonha, glorificar minhas desditas. Tenho ganas de aprender a sabedoria de viver despegada, de tudo e de todos, ao léu da existência, guarnecida apenas e sempre de gratidão.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

Manifesto em favor da carona



    Eu pego carona. Dentro da cidade, de um lugarinho a outro, entre uma cidade e outra, rodoviariamente. Seja porque o céu está rugindo e não poderei fazer minha habitual caminhada sem banhar-me na chuva, seja porque tenho compromisso na avizinhada cidade, eu pego carona. E adoro.
   
    Tenho percebido reações de nada apoucado espanto e assombro quando digo isso - conto da prática que adotei e de meu prazer nela. Por isso, deixo aqui o desvelo, acorde à minha particular perspectiva, das vantagens e des- do “tomar carona”.

    Em primeiro e óbvio lugar, a carona é gentil com os bolsos. Sim, economizamos ao tomar carona, tanto o ônibus entre bairros quanto entre cidades. As caronas combinadas, por exemplo, a partir de grupos do facebook, costumam ter um preço fixo, tacitamente acordado entre os participantes, de modo a não haver abuso. O objetivo da carona é facilitar a vida - de quem oferece e de quem procura. Assim, para aqueles que viajam amiúde, frequentemente, 10, 15, reais de distância entre a passagem-carona e a passagem convencional fazem uma bela diferença.
   
    Em segundo e principal lugar, ao meu ver, as gentes. Isso mesmo. Ao pegar carona, a gente conhece gentes. Passa certa fatia de tempo confinada com elas num automotivo espaço - oportunidade ímpar para engatar conversa. O mais disfrutável, é claro, ocorre quanto as pessoas envolvidas estão em disposição conversadora - ou mais conversadora que silenciosa - e o papo flui.
   
    Além disso, a coloridez plural das diferentes flores fazem mais vistoso buquê. Em outras palavras, é ótimo conhecer pessoas fora da nossa bolha, de nossos habituais círculos de convivência e ocupação. E cada carona é uma surpresa. Pode ser uma instrutora de música que de repente canta e arrepia sua alma, ou um biólogo que pesquisa zoologia dos invertebrados numa reserva, ou uma pessoa que faz mussarela de búfalos num lugar onde a internet não chega. Ora um programador de software que trabalha numa gráfica, outrora um bombeiro aventureiro que tem modo vida viajante.

    De que outra maneira, eu me pergunto, nossas existências teriam chance de resvalarem-se, elas que se existem em paragens tão díspares, tão outras umas das outras?

    “Ah, os perigos”, podem uns e outros objetarem. É verdade, eles são numerosos. Tantos quantos seriam nos modos tradicionais de transporte. “Quem vê cara não vê coração, vai que é alguém de má índole e quer te fazer algum mal?”
   
    Em resposta a isso, eu normalmente devolvo pergunta: “você conhece todas as pessoas com quem anda de ônibus todos os dias, ou nos finais de semana? Botaria sua mão no fogo pelo caráter e as intenções delas? Conseguiria afirmar sem esboço de dúvida que está absolutamente seguro ali?

    Perigos se corre a cada instante que se vive. “Viver perigosamente”, para mim, é uma expressão pleonástica. O risco é inerente ao respirar e, mais ainda, ao movimento. O pior dos riscos, ouso dizer, é não viver.

    Pois, quem não se entrega a riscos vive tão cautelosamente, com tanta parcimônia, economizando emoções e experiências, não vive. Quem não se atreve, não se joga, não se expõe, não se permite... Não explora personalidades preciosas, estrangeiras, não se entrega a situações inéditas, muitas vezes dignas de um bom causo... Não vive.

    Vamos e venhamos, minha gente, a vida é tão mais gostosa quando somos atrevidos! E a viagem, não raro, quando pegamos carona.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

Pares e ímpares

                                                                       
 
   Já Aristóteles dizia, na mui antiga Grécia, “a melhor maneira de não se conhecer é ficar a olhar-se no espelho". Ou seja, nós nos construímos e nos reconhecemos através do contraste, contrapondo-nos ao nosso diferente, observando e reconhecendo o outro, nos deixando fascinar por ele.
   
    De fato, só podemos “pensar fora da caixinha” se primeiramente a reconhecemos, identificamos sua existência. E obrigatoriamente só a enxergamos se estivermos fora dela. Ou olhando-a de dentro, atentos, porém, ao tudo o que lhe é externo. Similarmente, o isolamento não é bom cenário para o autoconhecimento. Passar mais tempo em nossa companhia, unicamente, não concorre para conhecermo-nos melhor. Pelo contrário. Assim, não temos uma boa perspectiva para miramo-nos, não nos colocamos em situações em que nos comportamentos de certo modo, pensamos tal cousa e depois nos indagamos por quê.

    Analogamente, mais efetivo é o conhecimento que tomamos de nós mesmos se estamos entre nossos diferentes que entre nossos semelhantes. Precisamos do contraste para delinearmos nossas percepções, nossa silhueta, nosso perfil.

    Não é à toa que muito melhor podemos esboçar uma definição do que é “ser brasileiro” se voltearmos pela Argentina e Colômbia do que em nosso país. Aqui, tudo é brasileiro e tendemos a generalizar comportamentos humanos como próprios do Brasil. Lá, temos parâmetro para saber o que não é brasileiro e, portanto, o que é que nos particulariza e especifica.

    Por que então preferimos a proximidade de nossos pares e evitamos a de nossos ímpares? Por que tão desconfortáveis nos sentimos na presença destes últimos a ponto de desejarmos a fuga, de sofremos já por antecipação ao ter que estar com ela? Por que fechamos de tal modo nossos círculos àqueles mais semelhantes a nós?

    Será que não sabemos mais olhar para nós mesmos, através do mais liso e preciso espelho de todos, os olhos do outro? Será, por outro lado, pela liquidez que nossa personalidade e nossas convicções não raro assumem quando nos encontramos num hábitat estrangeiro em que de todo modo queremos ser incluídos e sabemos que muito menos hostil ele nos será se lhe parecermos parecidos do que estranhos, diferentes completos?

    Será por essa sensação de que não podemos “ser nós mesmos”, falarmos sobre os assuntos que mais nos apetecem, expressar opiniões que mais genuína e convictamente temos, com conforto e sem reservas, entre nossos ímpares? Será por que é mais difícil existir sendo fiel a si mesmo com segurança entre quem nos é diametralmente oposto? Ou pelo desconforto da autopercepção, da claridade límpida em que vemos a nós mesmos no ambiente entre outrem?

    Não sei. Talvez seja por tudo isso. Mas fato é que - e eu digo isso principal e especialmente para mim mesma, já que esta é uma dificuldade na qual me identifico - grande bem nos faríamos se passássemos a reservar mais tempo e ocasião para estar entre nossos ímpares. Entre quem leva a vida de modo outro ao nosso, tem dias regulares que nos parecem fenômenos alienígenas se comparados aos nossos. Entre quem tem concepções diferentes sobre tudo e em nada se comporta como nós.

    Clarões de autopercepção e entendimento nos ocorrem nesses ensejos que muito preciosos nos podem ser para vivermos - quando sozinhos conosco, entre nossos ímpares e nossos pares.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

Vivemos num mundo despalavrado?

O olho devora tudo instantaneamente, e o cérebro, agradavelmente provocado, se acomoda para ver coisas acontecendo sem se preocupar em pensar.” Virginia Woolf

    Como um mundo com pudor de menos é dito despudorado, um mundo com palavras de menos é dito despalavrado. De minha parte, acho que ainda não vivemos um mundo despudorado. Mas já vivemos às bordas de um mundo despalavrado. Isso, para mim, claro, que sou uma pessoa muito palavrosa.

    Sim, palavrosa. Palavrosa porque me guardo e me entrego, me sufoco e me desafogo, me perco e me compreendo, me calo e me expresso com palavras. Penso em prosa. Poesia, não, porque a poesia é muito musical para pertencer aos contadores de histórias.

    Por ser uma pessoa palavrosa, o hábitat natural do meu sentimento é o romance. Por ser uma pessoa palavrosa, é muito difícil que uma peça de teatro, um filme ou uma escultura me toquem mais que um romance. Ou um ensaio, ou uma crônica. Eu não costumo me identificar com um personagem transmitido à vida por um ator, em gestos, fisionomias e movimentos como me identifico por um cuja profundeza posso acessar pelas palavras, na descrição de um narrador ou no fluxo da consciência do próprio narrador-personagem. Não sinto tanta empatia ou transferência no cinema como na literatura. E quando quero dizer algo a alguém, demonstrar o que sinto, falsear o que não sinto, fazer um apelo sempre me vem mais fácil, me parece mais exata e mais capaz uma mão cheia de palavras que, por exemplo, uma mão cheia de imagens.
   
    Talvez isso seja sinal de que minhas sensibilidades são de algum modo aleijadas, tartarugas. Elas precisam da vagareza das palavras para sentir o que alguns sentem com o disparo do toque, da forma, da imagem, do som. Talvez seja indicador de que minha inteligência, minha razão governa soberana - possivelmente despótica - sobre meus sentidos.
   
    Não sei. Só sei que fato é que o mundo - ah, o mundo! - e sua maioria parecem estar na contracorrente da palavra. E eu, agarrada às palavras, na contracorrente do mundo.

    Cada vez mais gente parece associar ver como sinônimo a pensar. Cada vez mais gente consegue canalizar o que pensa, o que sente, o que quer contar pelo áudio e pelo visual. Cada vez mais gente prefere acompanhar uma história, experimentar uma sensação pelo áudio-visual.

    E eu fico a me perguntar se isso é questão de personalidade ou de coletividade. Se cada um de nós tem um pendor, por natureza, ou se nossas sensibilidades são condicionadas ao que somos expostos. Se é coincidência que no meu tempo existam aparentemente tão poucas pessoas palavrosas ou se isso se explica porque a calma das palavras não cabe, não convém no nosso frenesi moderno. Se a entrega que elas pedem não combina mais com a preguiça que nos domina.

    Eu fico a me perguntar se nós, perpétuos palavrosos, condenados a viver em meio às palavras porque não conseguimos desaprender a amá-las... Se nós estamos mesmo em extinção. E se o mundo não tem algo a perder com isso.
   
    Afinal, a mais rasa das palavras muitas vezes dá conta da mais profunda emoção. Um par bem arranjado de palavras tem um poder imenso de tocar, de despertar, de mover. Há certas explicações que se precisa dar na tranquilidade, na demora e no detalhe das palavras. Há certas vivências cujo narrar é incompleto sem as palavras. Há certas palavras que contemplam o infinito. Há certos “eu te amo” que não se substituem sem prejuízo por um ♥.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

O sucesso, o fracasso e as horas vagas

                                                              

    Às vezes, sinto que queria fracassar. Sim, queria ter a oportunidade de viver um fracasso. Mas não um pequeno fracasso, desses que colecionamos discretamente todos os dias, como o término de uma relação, ou a continuação daquela que já azedou. Não, um grande fracasso. Um fracasso estrondoso, desses que deixam a gente sem chão, ou sem casa, e que engrandecem os olhos e a língua das pessoas.
   
    Você deve estar achando que enlouqueci. Que joguei todo o meu juízo pela janela. Que devia ser mais prudente com as palavras, que têm poder, e “tomar cuidado com o que desejo”. Vai que uma hora acontece.
   
    Não finjo conhecer a sensação, provavelmente a princípio muito indigesta, muito amarga, angustiante do grande fracasso. Não finjo, tampouco, não sentir medo dessa sensação. Contudo, percebo que o fracasso liberta. E me sinto atraída pelo sabor dessa liberdade que o fracasso dá.

    Pois, quando somos uma promessa, sentimos que temos que cumpri-la. Temos que cumprir-nos. Mostrar que são justificadas as esperanças das pessoas em nossa volta, que foi certo o palpite daqueles que apostaram em nós. Ou, por outro lado, demonstrar o engano daqueles que apostaram contra nós. Queremos provar algo a alguém. Seja que estão errados a nosso respeito, seja que estão certos. Queremos provar algo, também, a nós mesmos.
   
    E quando alcançamos algum sucesso... em geral contraímos um doentio vício a ele. Estamos presos a ele, presos por ele. Passamos a viver nossa vida em sua órbita, a seu favor, a seu serviço, submissamente. Viramos escravos de nossas conquistas.

    Quem tem um ponto comercial bombando logo quer abrir outro, noutro ponto da cidade. E depois mais um. E depois outro, numa cidade vizinha. Quem se tornou capitão, quer se tornar major. Quem fez um nome, tem um nome a zelar e se torna zelador dele em tempo integral. Num trabalho que não é nada flexível.

    Quem alcança o sucesso, em geral o coloca em primeiro lugar. Deixa a vida para mais tarde, para depois. Para as horas vagas.

    Não pode ler aquele livro que quer ler há tanto tempo, que flerta consigo na estante todo dia e toda noite, porque não tem tempo ou paz de mente para isso. Precisa ler as últimas inovações de seu campo de atuação, ser um profissional atualizado. Antenado.

    Não pode fazer aquela viagem àquele lugarzinho lindo que dá um quentinho no peito ao pensar sobre porque tem muitos compromissos. Deixa de passar tempo com aquele amigo cuja companhia faz tão bem, aquele que tão perfeitamente lhe entende, que parece conhecer sua alma do avesso... porque está sempre muito ocupado.

    Ficar à toa? Tempo para si mesmo? Fica para as horas vagas.
   
    Viajar sem destino, conhecer gente interessante? Experimentar sabores e paisagens, momentos e cores lindas? Para as horas vagas.
   
    Jogar tudo para o alto, uma só vez? Passar o dia na cama? Passear com os cachorros? Horas vagas. Quando tiver um tempinho. Talvez nas férias do próximo ano.

    Viver a vida fica para depois. Para as horas vagas. Que de alguma forma parecem não existir. Desaparecem sempre que se aproximam.
   
    Por isso eu sinto que gostaria de fracassar, no sentido mais senso comum da palavra. Para viver mais. Para não deixar a grandeza das pequeninas alegrias para depois. Para não adiar os ousados e tão desejados projetos para mais tarde. A vida para as horas vagas.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

Palavras de aniversário

                                                                   


     Quando a gente faz aniversário, e o celebra, as pessoas costumam pedir um punhado de palavras, um arremedo de discurso. Pelos 2 anos do Pensar, que perigo!, aqui estão suas palavras de aniversário.

    É contraditório o sentimento de fazer anos. Alegre e triste, cheio e vazio, complexamente simplório. Ficamos a nos orgulhar de tudo o que realizamos em mais este ano (e na vida), a nos envergonhar de tudo o que poderíamos ter feito e não fizemos, do que não realizamos. A matutar inutilmente o que poderíamos ter feito feito diferente, ou melhor.

    A sensação de infância não se alivia quando amadurecemos. A de amadorismo, não empalidece quando nos profissionalizamos. Ai, parecemos ainda tão irremediavelmente imperfeitos e inocentes! Com tanto mais a aprender do que já aprendido! Com um despreparo para a vida (e para a morte) que só cresce à medida que para elas nos preparamos...
   
    Em alguns aspectos, porém, melhoramos. Crescemos. Quando ficamos mais velhos, em geral falamos menos, mas nos expressamos mais. E melhor. Não precisamos de palavras em excesso, aprendemos a manuseá-las com parcimônia, com cuidado. Estancamos a verborragia da juventude, que tagarela, que desperdiça a preciosidade das palavras sem medida... deixando-as jogadas desleixadamente sobre a cama, entre o abraço, nas desculpas, nas falsidades, e até nos agradecimentos.
   
    Quando a gente fica mais velho, aprende a ter mais paciência. Entende que é preciso se engravidar da ideia, do plano, do projeto, antes de sair despejando-os pelas palavras, em papel ou em ouvidos alheios. O tempo da gestação é uma custosa espera quando somos jovens. Ao crescer, percebemos que é necessário para tudo se fortalecer, madurar e proteger dentro da gente. Até conseguimos apreciar esse tempo. Saboreá-lo.

    Quando a gente fica mais velho, nem sempre aprende a lidar melhor com os outros, mas decerto consegue lidar melhor consigo mesmo. A gente se conhece melhor, sabe das próprias fases e das crises, do que gosta e do que não gosta, do que dá prazer, causa desgosto e preguiça. Sabe dos próprios talentos e das próprias virtudes, do que sabe fazer e do que absolutamente não nasceu para.

    A gente aprende a se aceitar. Desiste de se mutilar para se enquadrar na expectativa e no aplauso dos outros. Até porque, normalmente, eles deixam de importar. Percebemos que dele não precisamos. Dele prescindimos. Estamos melhor sem.

    Quando a gente fica mais velho, aprende a não fazer perguntas demais. A tomar o que a vida nos oferece, esbanjando elegante apetite, sem botar defeito. A gente aceita, entrega, confia, agradece. E o faz sem esforço, nem esperneio, sem sacrifício.

    Quando a gente fica mais velho, por fim, e tendo sido tocado pela sabedoria da experiência, faz as pazes com o tempo. Entende e aceita suas voltas e viravoltas, convive bem com sua outrora exasperante alternância entre uma lentidão morosa e uma rapidez alucinante. Passa a caracterizá-lo como amigo, não como impiedoso. Acostuma o ouvido a seus tiques e seus chiliques, ouve as lições que ele dá em seu sussurrado silêncio, as histórias que conta na nossa hora certa, sempre certa.

    Nesse mais um ano completo de existência, gosto de pensar que o Pensar, que perigo! fez um pouco de tudo isso... Falou menos, se expressou mais; se acalmou com seus projetos, consigo mesmo, com o tempo... Ah, o tempo, esse tempo levado... Nem me deu tempo de planejar um festejo mais bem escrito desse feliz e orgulhoso aniversário...